Quando um aluno me perguntava sobre um bom tema para o TCC, eu costumava responder que ele podia escrever sobre qualquer assunto, desde que não fosse sobre desconsideração da personalidade jurídica. Eu estava cansado de ler mais do mesmo: a dicotomia entre aqueles que acreditavam que a desconsideração só poderia ser declarada quando houvesse prova de fraude e aqueles que entendiam que os empresários deviam assumir integralmente os riscos da empresa. A discussão se tornou chata, estanque. Tornou-se a Linha Maginot do direito empresarial brasileiro.
Mas eu estava errado. Muito mais textos sobre a desconsideração da personalidade jurídica deveriam ter sido escritos, por uma razão bem simples: o tema atinge a essência das empresas, que é a análise de risco feita por quem pretende abrir uma empresa. Simplesmente não se pode deixar de tentar revisar uma linha de interpretação que, mesmo visando aos mais nobres objetivos, freia violentamente a economia brasileira.
Feita a mea culpa, e imaginando alguns ex-alunos se divertindo (com toda razão) ao me verem escrever sobre o tema, quero, pelo menos, propor uma abordagem diferente. Vamos deixar de lado a análise da lei e da jurisprudência, que bem conhecemos. Vamos tentar uma estratégia que costuma funcionar para resolver problemas complexos. Vamos nos afastar um pouco do problema, para analisá-lo sob ângulos impossíveis quando estamos com nossos narizes enfiados nos detalhes. Vamos tentar uma análise histórica, uma análise matemática e uma análise econômica um pouco diferente da usual, para tentar romper as trincheiras em que nos metemos. Comecemos com a história.
No século XIX, a economia europeia estava arruinada. Guerra após guerra, os governos esvaziaram seus cofres, e o povo mal tinha o que comer. Elevou-se a tensão social (mas não os luxos dos governantes), e naturalmente surgiram propostas revolucionárias. As principais foram o comunismo e a transformação do capitalismo (na época, um protocapitalismo industrial).
Os defensores da desapropriação dos meios de produção (em outras palavras, os comunistas), perceberam que a riqueza estava sendo gerada basicamente de duas formas: sendo extraída de países colonizados, ou sendo gerada pela economia interna. Economia interna que se resumia a algumas grandes indústrias, todas pouco intensivas em tecnologia. Todas explorando absurdamente sua mão de obra. Todas controladas por pessoas que estavam ali por herdarem dinheiro antigo e nobre; não por mérito. Tornar coletivos estes meios de produção era uma forma de corrigir o problema histórico da acumulação primitiva do capital e permitia uma distribuição mais justa da mais-valia (para usar dois termos cunhados por Marx).
A ideia parecia boa e justa. Melhorava a situação das pessoas empregadas, mas não resolvia o problema maior: gerar emprego (e renda) para a imensa parcela da população que constituía o exército mundial de reserva (voltando a Marx). Além de melhorar as condições de trabalho, era preciso criar novos empregos. Uma quantidade enorme de novos empregos. E para isso era necessário criar novas empresas. Uma quantidade enorme de novas empresas. Principalmente empresas de pequeno porte (que são as maiores empregadoras em qualquer economia).
Provavelmente, estas empresas não existiam naquela época em consequência de uma análise de risco. Os potenciais empreendedores tinham consciência de que seu negócio, como qualquer negócio, podia não dar certo. No século XIX ou no XXI, não há empresa sem risco. Qualquer empresa pode ruir, por uma infinidade de razões, por mais bem intencionado que seja o empreendedor. O problema não é risco do insucesso, que faz parte do mercado. O problema são os efeitos pessoais da materialização deste risco. Se a empresa ruir, o empreendedor perderá aquilo que investiu (além do tempo e do trabalho dedicados ao projeto), ou perderá todo o seu patrimônio pessoal (incluindo bens que não foram gerados pela empresa e que com ela não têm qualquer relação)? A diferença, óbvio, é brutal.
Naquela época, a única forma de limitar as perdas aos valores e ativos relacionados à empresa era constituir uma sociedade anônima. Mas as exigências legais reservavam esta espécie societária aos grandes empreendimentos (àquelas grandes e velhas indústrias…). Por isso, quem tinha uma boa ideia normalmente dormia com ela, sem transformá-la em uma empresa. O risco era grande demais.
Mas tudo mudou na década de 1890. Na Inglaterra e na Alemanha foram editadas leis que limitavam os riscos de todos os empreendedores, pequenos e grandes. Criou-se a figura jurídica da sociedade limitada. Reduzido o risco a níveis aceitáveis, as ideias dormentes ganharam vida. Criaram-se empresas. Muitas empresas, de todos os tipos. Empresas que precisavam de trabalhadores, cujos salários geravam consumo, que gerava demanda para novas empresas, que geravam novos empregos… o que enriquecia os países (pela primeira vez, de forma democrática).
Claro, houve desvios. Houve quem se aproveitasse da nova regra para prejudicar seus credores de maneira fraudulenta. O caso de Aaron Salomon não foi isolado. Para combater estes desvios, surgiu uma exceção ao regime da limitação da responsabilidade dos sócios: a desconsideração da personalidade jurídica. Exceção que seria aplicável apenas quando fosse demonstrada uma fraude. Se a empresa ruísse por razões de mercado, a limitação da responsabilidade se mantinha.
Este sistema espalhou-se por todo o mundo, e se mantém sem grandes alterações. Mas, no Brasil, a essência do sistema foi dramaticamente alterada.
Nossa jurisprudência é farta em exemplos de desconsideração da personalidade jurídica sem demonstração de fraude. Sobram casos em que os sócios e administradores (assim como ex-sócio e ex-administradores) têm seu patrimônio pessoal penhorado para a satisfação de dívidas da empresa. E, nestes casos, nem se fala em fraude. Basta que a sociedade não tenha condições de pagar a conta. No máximo, invocam-se princípios gerais (como a proteção da dignidade humana ou o exercício da função social do direito) para fundamentar as decisões.
No fundo, voltamos ao século XIX. Aqui (e só aqui) o empreendedor deve aceitar o risco de perder tudo o que tem (incluindo bens e ativos herdados ou conquistados, por mérito, de outra forma).
Não tenho dúvida de que estas decisões emanam de pessoas bem intencionadas. Pessoas que não buscam destruir o mercado. Querem, simplesmente, proteger a parte menos favorecida em uma relação processual. Trata-se de uma atitude nobre. Mas ela envolve uma injustiça e gera um efeito que, imagino, não são percebidos pelos julgadores.
Vamos, primeiro, à injustiça. O empresário é visto como um picareta. Simples assim. Ele se tornou o inimigo da sociedade justa, fraterna e igualitária que tanto desejamos.
Este simplismo tem que ser abandonado, por uma razão matemática: se os empresários ganhassem dinheiro descumprindo suas obrigações, passando a perna nos outros e enganando aos menos avisados, simplesmente não haveria mercado. Isto porque o mercado depende de crédito. Sem crédito (para investimento, pelos empresários, ou para consumo, pelos seus clientes), a economia não anda.
O crédito vem de agentes econômicos que acreditam que receberão o que lhes é devido. E estes agentes econômicos têm informação suficiente para acreditarem que receberão. Os bancos são a principal fonte de crédito. Se eles, em sua análise de risco, constatassem que os empresários são tão enganadores como o Judiciário os imagina, não lhes emprestaria um tostão furado. Mas os bancos (que sabem analisar riscos e fazer contas) seguem sua vida. E seguem muito bem, cobrando (e recebendo) o capital emprestado com os juros naturalmente exigíveis.
A existência de crédito comprova, matematicamente, que as pessoas, na imensa maioria, cumprem suas obrigações. O que acaba na mesa de um juiz é a patologia, e não o retrato do mercado. A imensa maioria das pessoas é honesta e trabalhadora (incluindo, para espanto de alguns, os empresários). Convivo diariamente com empresários há muitos anos. Claro que há pessoas desprezíveis entre eles, mas não mais do que há em todas as outras profissões.
UMA VANTAGEM COMPETITIVA A EMPREENDEDORES SEM ESCRÚPULOS
Exposta a injustiça, vamos à consequência despercebida: a criação de um diferencial competitivo em benefício de pessoas sem patrimônio e/ou sem escrúpulos.
Quando um empreendedor não tem nada, nem mesmo escrúpulos, não há uma elevação de risco em razão de uma decisão que desconsidere a personalidade jurídica da empresa. Todos os mandados podem ser expedidos contra ele, que nada vai ser encontrado. Ninguém perde o que não tem, e quem inescrupulosamente escondeu seus bens também não vai ser atingido.
Só é atingido pelos mandados judiciais quem tem bens, e, por ser honesto, não os escondeu. Quando o empreendedor tem um patrimônio pessoal resultante de outras atividades, ou mesmo de outras gerações, e tem tudo devidamente declarado, o risco do insucesso passa a ser alto. Inaceitavelmente alto. E desta forma cria-se uma vantagem competitiva em favor do primeiro grupo.
Quando um juiz desconsidera a personalidade jurídica para executar uma sentença trabalhista que a empresa não tem condições de pagar, certamente age movido pelas mais nobres motivações. Está certamente ajudando o autor da ação. Mas, inconscientemente, também está ajudando pessoas a quem provavelmente não estenderia a mão. Está ajudando gente sem escrúpulos, que vê o mercado esvaziado de concorrentes, na medida em que muitas das pessoas que têm patrimônio e dignidade, e não aceitam um risco que para eles (e só para eles) é real e injustificável.
É preciso lembrar que a materialização da função social do direito não se resume a julgar a favor da parte menos favorecida em um determinado processo. É necessário projetar os efeitos sociais desta decisão. E, se o efeito social envolve uma percepção de risco que leva os empreendedores capitalizados e honestos a não investirem, é hora de repensar as prioridades.
Sim, precisamos proteger os trabalhadores. Mas, também precisamos estimular a geração de empregos. E, neste ponto, estamos falhando grotescamente.