Estabelecimento: natureza e estrutura

Estabelecimento é a fábrica, é a loja, é o restaurante, vistos de forma objetiva. É o local onde o cliente obtém o que busca; o local onde o empresário exerce sua operação. Ou, como diz a lei (art. 1.142 do Código Civil), é o complexo de bens organizado pelo empresário, para o exercício da empresa. Um complexo de bens com uma série de características peculiares. Vamos a elas:

  1. Estabelecimento não tem personalidade jurídica. Pessoa, física ou jurídica, é o empresário que explora o estabelecimento. É ele quem atua, criando direitos e assumindo obrigações. O estabelecimento é um bem. Um bem que integra o patrimônio do empresário.
  2. O estabelecimento é um bem diferente daqueles que o compõem. O estabelecimento é formado por um conjunto de elementos (estoque, máquinas, equipamentos, ponto, contratos e diversos outros). Quando estes elementos são reunidos de forma organizada, permitindo ao empresário abrir as portas e receber seus clientes, surge um novo bem, autônomo e diferente de todos os que o integram. Surge o estabelecimento. E deste fato decorrem duas consequências principais. natureza deste novo bem é autônoma em relação à de seus elementos: (i) juridicamente, o estabelecimento é sempre um bem móvel, ainda que seja composto por contratos (que não são bens) ou mesmo por um bem imóvel; e (ii) o valor do estabelecimento não é igual à somatória dos valores individuais dos elementos que o compõem. Normalmente, é superior (como resultado da capacidade de geração de riqueza futura).
  3. Estabelecimento não se confunde com patrimônio. Quando um empresário inaugura três lojas, surgem três novos estabelecimentos. Mas o patrimônio continua um só, ainda que seu valor tenha se elevado em razão da agregação de novos estabelecimentos.
  4. O estabelecimento tem criação fática, e existe enquanto mantiver sua funcionalidade. A criação de um estabelecimento não depende de nenhum registro. Basta reunir elementos que permitam o desenvolvimento da atividade pelo empresário para que surja um novo estabelecimento. E este estabelecimento continuará existindo, mesmo que mude de dono, enquanto for possível operar por meio dele.
  5. Há elementos que economicamente estão vinculados ao estabelecimento; mas, juridicamente, não o integram. A clientela não integra o estabelecimento (ninguém é dono de seus clientes e, portanto, não pode vendê-los). Também não fazem parte do estabelecimento o aviamento (que é definido como a capacidade de atração de clientela; ou seja, é uma qualidade, não um elemento) e o nome empresarial (que não se confunde com o título de estabelecimento[1]). A regra prática é a seguinte: os elementos do estabelecimento devem ser funcionais (ou seja, devem servir à exploração da atividade econômica), e devem ser individualmente transferíveis (não haveria sentido em incluir no estabelecimento algo que não pode ser transferido ao comprador em caso de trespasse).

Trespasse: formalidades e riscos

Compreendidos estes conceitos, vamos às regras que o Código Civil impõe às operações de compra e venda do estabelecimento. Aliás, a grande preocupação do legislador a respeito do estabelecimento foi regular a sua venda. Todas as normas que seguem o art. 1.142 tratam do assunto. E são normas que trazem um tratamento diferenciado em relação a muitos aspectos de uma compra e venda comum. Tanto que se convencionou dar um nome próprio para a transferência de um estabelecimento: trespasse.

  1. Publicidade: Para que o contrato gere efeitos frente a terceiros, deve (i) ser publicado no Diário Oficial do Estado; e (ii) ser arquivado na Junta Comercial.
  2. Vedação à concorrência: Salvo se houver estipulação em sentido diverso no contrato de trespasse, o vendedor está proibido de concorrer com o comprador durante o prazo de 5 anos.
  3. Transferência automática dos contratos empresariais: Em princípio, os contratos empresariais vinculados ao estabelecimento são automaticamente transferidos (sub-rogados) para o adquirente. Há, contudo, três exceções: contratos de caráter pessoal, existência de justa causa em favor do terceiro contratante (perda de uma garantia pessoal, por exemplo) ou existência, no contrato a ser transferido, de cláusula afastando a incidência do art. 1.148 do Código Civil.
  4. Responsabilidade pelas dívidas do vendedor: O comprador do estabelecimento assume as obrigações contraídas pelo seu antigo titular, com a exceção das dívidas e obrigações não contabilizadas. Durante o período de um ano (a contar do trespasse, em relação às dívidas vencidas, e do vencimento, em relação às vincendas), comprador e vendedor permanecem solidários no pagamento destas obrigações. Superado este prazo, a responsabilidade será assumida integralmente pelo comprador.
  5. Possibilidade de declaração de ineficácia: Credores do antigo titular do estabelecimento (incluindo os credores de dívidas não contabilizadas) podem requerer a declaração de ineficácia do trespasse. Esta ineficácia somente não será declarada nos seguintes casos: (i) se já houve o pagamento a todos os credores que o vendedor do estabelecimento tinha à época do trespasse; (ii) se havia no patrimônio do vendedor, à época do trespasse, bens suficientes ao pagamento de todos os seus credores; e (iii) se, à época do trespasse, todos os credores do vendedor foram pessoalmente notificados, e não se opuseram no prazo de 30 dias.

Os dois últimos pontos são de longe os mais relevantes, por tratarem dos riscos.

São normas pesadas, que impõem consequências severas. Não se trata de pagar uma conta ou uma multa. O risco envolve até mesmo a possibilidade de o comprador perder o estabelecimento, para que seja pago um credor do vendedor que nem mesmo era indicado em sua contabilidade[2].

Como, por enquanto, a lei que temos é essa, cabe aos advogados envolvidos nas operações fugirem dos modelos padrão, e construírem um contrato que, no mínimo, reduza os riscos. Para tanto, alguns cuidados são fundamentais:

  1. Realizar as publicações na forma da lei. Esta é uma providência essencial também para o vendedor, que assume o seguinte risco: se o valor das dívidas contabilizadas for abatido do preço, e se o comprador deixar de pagá-las, o vendedor será responsabilizado durante o primeiro ano. Este risco pode ser estendido no tempo se não foram tomadas as providências de publicação (que, na prática, quase nunca são tomadas). Mas o principal interessado é obviamente o comprador, que quer exercer sua propriedade de forma plena.
  2. Examinar a contabilidade do vendedor. No caso, buscar no Livro Diário (que é o livro contábil obrigatório em que estão descritas as dívidas de um empresário), todas as obrigações assumidas pelo vendedor (as quais, de acordo com o art. 1.146, serão assumidas pelo comprador).
  3. No caso de compra de parte dos estabelecimentos explorados pelo vendedor (e não de todos os seus estabelecimentos, de forma que o vendedor continuará explorando um ou alguns deles), criar mecanismos de compensação ou garantia, caso o comprador acabe sendo obrigado ao pagamento de outras dívidas que não as materialmente vinculadas ao estabelecimento adquirido.
  4. Criar mecanismos de tratamento das contingências. No caso, as principais são o pagamento de dívidas vinculadas ao estabelecimento, mas não abatidas do preço, e a hipótese (muito mais grave) de perda do estabelecimento para a satisfação de credores não registrados na contabilidade do vendedor.
  5. Listar os ativos trespassados. Colocar de forma clara e completa, no contrato ou em um anexo, tudo o que estará abrangido na transferência, tanto para evitar surpresas desagradáveis (por exemplo, a retirada de equipamentos) quanto para regular a possibilidade de manutenção do título de estabelecimento ou a transferência de marcas (para o que é necessário um registro específico no INPI).
  6. Listar os ativos remanescentes do empresário. Como uma das defesas possíveis em caso de declaração de ineficácia do trespasse é a demonstração de que o patrimônio residual do vendedor era suficiente para o pagamento de seus credores, pode ser muito útil uma lista completa deste patrimônio.
  7. Nunca fazer pagamentos indiretos. Em negócios de menor porte, é comum que os pagamentos sejam feitos diretamente aos sócios (no caso de o vendedor ser uma sociedade empresária). Estes pagamentos podem constituir fraude contra credores.

Mesmo com todos estes cuidados, não como zerar todos os riscos. Isso porque as defesas possíveis em caso de declaração de ineficácia estão restritas àquelas indicadas no art. 1.145. Nos três casos, é necessário que o comprador saiba com segurança quais são todos os credores do vendedor, mesmo os não contabilizados. Como a boa-fé deste comprador é irrelevante, não adianta pedir uma lista dos credores ao vendedor. E, o que é pior: se o vendedor não contar voluntariamente ao vendedor quem são seus credores, simplesmente não dá pra descobrir a lista completa. O risco, aqui, é inevitável.

Não é difícil perceber que o legislador buscou restringir as operações de trespasse. Seu objetivo claro é a proteção dos credores do vendedor do estabelecimento, muito provavelmente sob a premissa de que eles estariam sendo vítimas de uma fraude.

Há uma clara desconfiança pairando sobre os empresários envolvidos. E esta desconfiança gera custos ao país. Afinal, se o risco envolvido na compra de um estabelecimento é inaceitável, empresas são extintas antes da hora; ou, o que é pior, nem são criadas.

[1]Um empresário pode ser valer de três elementos de identificação: nome empresarial, marca e título de estabelecimento.
O nome empresarial (firma individual, firma – ou razão – social, denominação) identifica o empresário. Sua proteção decorre do registro do empresário na Junta Comercial. No estado em que se fez o registro (ou em outros, se houver requerimento de extensão da proteção), nenhum outro empresário pode registrar nome igual ou assemelhado.
A marca identifica produto ou serviço. Sua proteção decorre de registro no INPI.
Já o título de estabelecimento é o sinal de identificação percebido externamente pelo consumidor quando se dirige ao estabelecimento do empresário. Muitos o chamam de nome de fantasia. No Brasil, não há registro para títulos de estabelecimento. Desta forma, o criador de um título é protegido apenas pelas regras gerais da concorrência desleal, caso alguém deseje se vale deste sinal de identificação para atrair clientela.
Tanto as marcas quanto os títulos de estabelecimento podem ser livremente transferidos, até mesmo de forma isolada. Já os nomes empresariais não podem ser alienados, a qualquer título. O art. 1.164 do Código Civil é claro neste sentido, ao dispor que “o nome empresarial não pode ser objeto de alienação.”

[2] Há apenas duas hipóteses em que a lei previu que o estabelecimento poderia ser vendido sem risco para o comprador: (i) no cumprimento de plano de recuperação judicial; e (ii) na liquidação de bens em falência. Mas, mesmo aqui, surgiu o risco, pela mão de juízes que ignoraram a lei para transferir dívidas do falido ao comprador do estabelecimento. Mas, ao menos neste caso, houve uma boa notícia: o STF julgou ADIN em que reconheceu a necessidade de respeitar o texto da Lei de Falências e Recuperação.