A Câmara dos Deputados tem em sua pauta dois projetos de lei que merecem debate profundo, mesmo no noticioso cenário pré-eleitoral e pré-prisional da política brasileira.

Ambos tratam do mesmo tema: o risco de os sócios de uma sociedade terem bens e ativos particulares atingidos na execução de obrigações geradas por uma empresa malsucedida. Mas as soluções propostas são soluções opostas.

PL 3401/08 x PL 8119/17

O Projeto de Lei 3401/2008 (recentemente aprovado pelo Senado), regulamenta a desconsideração da personalidade jurídica, deixando claro que os sócios só terão seus bens e ativos pessoais atingidos se houver prova de fraude. Seu art. 5º, § 2º, resume bem o espírito da proposta, ao dispor que “a mera inexistência ou insuficiência de patrimônio para o pagamento de obrigações contraídas pela pessoa jurídica não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica, quando ausentes os pressupostos legais”, sendo a demonstração de fraude o pressuposto legal básico.

Este projeto não altera a lei hoje vigente, ao menos no campo do direito material. Ele confirma, talvez de forma mais didática, o que está escrito na lei: a regra é a limitação da responsabilidade (ou seja, do risco assumido pelo empreendedor), enquanto a desconsideração é uma exceção (aplicável quando se demonstrar que este empreendedor praticou atos fraudulentos, especialmente por meio do desvio de ativos empresariais). O problema, bem sabemos, não está na lei, mas na insistência de alguns julgadores em ignorarem o que está escrito na lei.

Já o Projeto de Lei 8119/2017 propõe uma mudança. Uma mudança profunda e absolutamente desastrada. O projeto propõe que o art. 1.052 do Código Civil (que conceitua as sociedades limitadas) passe a ter a seguinte redação: Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas se os bens da sociedade não lhe cobrirem as dívidas, respondem os sócios pelo saldo, na proporção em que participem das perdas sociais, salvo cláusula de responsabilidade solidária.”

O risco dos empreendedores nas mãos dos deputados

Não é necessário muito esforço retórico para perceber o absurdo da proposta. Caso a sociedade entre em insolvência, os sócios responderiam com seus ativos pessoais, mesmo que estes ativos não tenham nenhuma ligação com a empresa. Um de muitos exemplos seria o de bens recebidos por herança, muito tempo depois da criação da empresa. Estes bens, como os outros bens pessoais dos sócios, estariam sujeitos ao destino da empresa.

Elimina-se o princípio óbvio de que toda atividade empresarial envolve risco. Elimina-se a percepção óbvia de um fracasso empresarial não decorre necessariamente de fraude dos empreendedores.

Decreta-se que todo empreendedor que tenha algum bem fora da empresa desviou este bem. Decreta-se o fim da presunção de boa-fé.

Propõe-se o regresso ao século XIX, ao tempo que que não tínhamos limitação da responsabilidade. Não por acaso, também não tínhamos empresas naquele tempo.

Seria melhor ser mais direto, e alterar de uma vez o nome da sociedade. Óbvio que, neste cenário, a sociedade deixaria de ser uma sociedade limitada. Podemos chamar de “Sociedade Limitada sem Limitação”, ou de “Sociedade All In”.

Não é necessário dizer que todos devemos nos mobilizar para barrar o PL 8119/2017. Devemos e podemos. Todos podemos amplificar este debate, e aqueles de nós que têm contato direto com a classe política devem explicar o desastre anunciado. Depois não adianta lamentar.